O chão molhado pela chuva
respingava lama para todos os lados quando ela batia suas galochas alaranjadas
contra o concreto. Abaixo do guarda-chuva, a menina carregava um sorriso
colorido demais para um dia cinza como aquele. Todos se espantavam com tamanha
gentileza em seu olhar, andar, falar e tudo que terminar com "ar".
Naquela semana, a bolsa de
Nova York havia caído; a Amazônia tinha um quilômetro a menos; mais um furacão
havia passado pelo Japão; e a essa altura, mais uma bomba acabava de explodir
em algum lugar do ocidente; mas quase nada, pra não dizer que nada, afetava o
jeito inocente dela de ser. O tempo úmido não frisava seu cabelo ondulado e
caramelo como um pacote de balas, e sua pele, aveludada como a de um anjo,
parecia não possuir poros. A natureza havia beijado-lhe a face e presenteado-lhe
com o melhor dos tesouros, a juventude.
Por isso havia quem a
invejasse. As moças que já tinham idade para usar sutiã tinham raiva da mocinha
de belos traços e caminhar elegante para sua idade. O bom gosto morava naquele
pequeno corpinho de violão, e isso as irritava, pois, por mais que quisessem
conservar aquela beleza menina de ser, elas não conseguiam e a viam esvair-se
delas cada dia mais.
Ninguém sabia de onde ela
vinha ou sequer pra onde ia. Nos dias de sol, ela não aparecia; porém, sempre
que chovia, ou que o tempo tempesteava, ela dava o ar da graça. Há quem diga
que ela é a encarnação do sol que quando cansa de assistir tudo lá de cima,
desce aqui na Terra pra passear.
Nesse sábado, ela mudou a cor
da capa de chuva, escolheu o azul, como o céu. As galochas ainda são as mesmas,
mas o guarda chuva parece ter ganhado bolinhas brancas ou vermelhas, não
importa. Ela deu boa tarde ao padeiro que na porta esperava os pães crescendo
na cozinha; sorriu para senhora de dentes amarelos que trancava a floricultura;
cumprimentou com um sorriso a filhinha dos donos da loja de animais. Depois seguiu
depressa rua afora.
A rua era daquelas longas, do
tipo que o garoto da banca de jornais de uma esquina talvez nunca veja a garota
da loja de calcinhas da outra esquina, e assim, se o destino não preparar uma
boa cilada para os dois, é provável que eles nunca se conheçam. É por isso que
ninguém talvez saiba da alegria que ela traz, nem ela tem. Pois se eles não
conhecem a garota da capa de chuva estranha, eu conheço e por ela choro. Não
choro de dó, choro porque um dia, todo seu agasalho fora alaranjado como
peônias, mas, a cada dia de caminhada na chuva, ela doava um pouquinho do seu
colorido para colorir o mundo de quem a vê e isso a tinha tornado menos
vibrante vagarosamente.
No início, ela era mesmo como
o sol. Brilhante, radiante, forte. Agora, sempre que ela vem visitar seus
velhos conhecidos, é sagrado deixar cor. E ela vai caminhando como se seus pés
fossem lápis de cor ou gizes de cera que fazem de cada passo um risco de vida
no preto e branco monótono e triste. Vai sem medo, sem preocupar-se em combinar
as cores, sem medo de sair fora do contornado do desenho, segura de que é isso
que ela tem de fazer. Segura de que as cores que ela aqui deixa, também a farão
sentir-se bem; que seja se recolorindo um dia, que seja admirando tudo quando
terminar; sua única certeza é de que ela está fazendo o certo. Sem dores, sem
traumas. Só vida.
Ela acaba de passar por aqui,
sei disso porque as lágrimas que derramo por ela estão adquirindo cor, acabam
de se tornar violeta. Me sinto culpada por eu também estar roubando sua vida,
me sinto culpada por viver e ajudar para que um dia ela se torne só um traçado
sem preenchimento. Me sinto culpada mas, hoje mais do que nunca, me sinto viva.
Me sinto viva como se um arco íris vivesse em mim.
Por
<3
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